segunda-feira, setembro 02, 2002



Religiões de Machos


Por Daniel Deusdado
Público, Segunda-feira, 2 de Setembro de 2002


No Senegal, uma mulher pode ser apedrejada até à morte porque "adulterou" - que diferença fará para o caso se era ou não realmente casada? No Paquistão, é punida com uma violação em grupo por culpas suas ou de terceiros - são chamados os líderes espirituais para executarem a sentença. Na África profunda, ficam sem o clitóris para não perturbarem os machos com o seu prazer. No Afeganistão, ou noutros quadrantes do fanatismo islâmico, passam uma vida inteira sem rosto e chegam mesmo a não ser tratadas num hospital por não existirem médicas. Na milionária Arábia Saudita, estão proibidas de conduzir. Na China, são abandonadas na infância, porque nasceram com o sexo desprezado pelas famílias de "filho único obrigatório". Em Portugal, e noutros países mais profundamente católicos, podem ser metidas na cadeia se abortarem (desconhecendo-se também qualquer imputação ao pai do feto).

A lista é provavelmente infinita, mas reflecte apenas a idade de trevas em que grande parte do planeta vive ainda mergulhado. E se os Estados laicos cortaram (em termos de princípios) com a supremacia masculina, assegurando, através da Carta dos Direitos do Homem, que todos nascemos livres e iguais, na verdade, no poder religioso - um dos mais decisivos -, as coisas não evoluem.

Ora, é no terreno do "sagrado" que vale a pena discutir muitas destas questões. A influência dos líderes religiosos é um verdadeiro contrapoder ao Estado, levando a que a lei seja subvertida e silenciada em função das mais profundas crenças. São os crimes "sagrados".

Nesse sentido, sabendo-se que a discussão contra os excessos de algumas correntes islâmicas é necessária mas difícil de se fazer sem movimentos de opinião a nível global, podemos, ainda assim, fazer a discussão, no plano doméstico, sobre o verdadeiro exemplo que as mais importantes igrejas cristãs dão no nosso quotidiano.

E o que salta à vista é uma evidente desigualdade de oportunidades e de acesso às vocações. Uma mutilação espiritual. A "Palavra de Deus" continua a ser um exclusivo masculino cuja razão de ser assenta meramente em questões de poder seculares que não fazem hoje qualquer sentido. Tivessem as mulheres acesso ao poder religioso e, certamente, muitas das fanáticas leis que dominam quer o islamismo, quer, até, o cristianismo, seriam postas em causa.

Os problemas de discriminação das mulheres são ainda mais difíceis de aceitar porque assentam, muitas vezes, em doutrina religiosa interpretativa. Sempre que se confronta o mundo muçulmano sobre os actos mais bárbaros contra as mulheres, surge a resposta de uma interpretação de "alguém" sobre "algo" que o profeta Maomé disse mas, que, em boa verdade, não permite a justificação dos crimes perpetrados.

O mesmo acontece no cristianismo. O verdadeiro doutrinador da segregação sexual (para quem quiser aplicar à letra a sua doutrina... com dois mil anos de distância... e sem perceber as diferenças históricas...) é Paulo e não Jesus. Mas é com base em Paulo que ainda hoje as mulheres se mantêm à distância de serem iguais na Igreja e terem, em consequência, acesso ao poder.

Enquanto a doutrina religiosa não reconhecer a imaterialidade da alma - abandonando assim o latente culto ao poder do falo -, a barbárie religiosa masculina continuará a mutilar: corpos e ideias; almas e vocações. Ora, nisto, estamos quase todos ainda no ponto zero.





salamandrine 10:17



This page is powered by Blogger. Isn't yours?